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HISTÓRIAS DA VILA DO POVO FELIZ (6): FAMÍLIAS MACIEL, SCHOER E SENGER

Atualizado: 21 de fev.


Desde criança, sempre sonhei em ser mecânico. Lembro-me com carinho dos dias em que eu me aventurava nas engrenagens e motores, disposto a aprender todos os segredos dessa profissão fascinante. Corri atrás desse sonho de forma despretensiosa, fiz um curso por correspondência no Instituto Universal Brasileiro e até ensaiei um período de experiência numa pequena mecânica local.

Aquela experiência marcou minha vida e me deixou cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais. Ainda lembro da queimadura que carrego no peito, uma lembrança silenciosa que escondi de meus pais por medo deles me proibirem de retornar à atividade que tanto amava.

Foi uma época de desafios, mas também de descobertas. Enquanto trabalhávamos, ouvíamos o rádio, embalados pela Copa do Mundo de 1978. Times como o Brasil, com jogadores lendários como Batista, Oscar e Zico, a Itália, com Cabrini e Bettega, e a Argentina, com Filiol, Passarela e Kempes e o Carrossel Holandês de Neeskens e Rensenbrink, estavam em nossa mente e nossas conversas. Ao mesmo tempo, meu coração batia forte pelo meu time do coração, o Colorado, que havia conquistado a Copa São Paulo de Juniores.

Minha mãe, sempre atenciosa aos meus sonhos, mandou fazer um macacão de tergal azul. Ela conhecia uma costureira famosa, esposa de um dos donos do Posto Esso. O posto também abrigava uma oficina de um jovem mecânico vindo de Cunhã Porã, que me oportunizou e várias outras crianças e jovens da vila.

Lá, convivíamos com o proprietário e experientes mecânicos vindos de Campo Erê, que compartilhavam conosco seu conhecimento e experiência. A vila fervilhava com a movimentação de diversos veículos, como fuscas, picapes, jipes, rurais, F-350, F-600, Chevrolet D 60. A demanda por serviços era imensa, e tínhamos que estar preparados para atender os veículos que vinham de Coxilha Negra, Progresso, Água Parada, Pedra Lisa e muitos outros lugares.

Na época como um jovem aprendiz, eu sempre ficava responsável por ajudar na busca das chaves e no lixamento manual e com a treme-treme durante a restauração das latarias dos carros. Enquanto isso, os mais experientes encaravam desafios como substituir a borracha do cardã e remover feixes de molas. Foi, sem dúvida, uma fase extraordinária da minha vida. A maioria dos meus colegas não seguiu nessa profissão, mas um deles persistiu e hoje é um habilidoso mecânico no Rio Grande do Sul. Incrivelmente, ele até se aventurou no mundo da política, concorrendo a vereador.

Todas as tardes, pontualmente às 12h30, eu vestia meu macacão de trabalho. Minha mãe sempre preparava um sanduíche e o embrulhava cuidadosamente em um pacote plástico de açúcar. Ao chegar na oficina, eu precisava escondê-lo, pois era comum os meus colegas aprontarem brincadeiras como esconder a minha comida ou até mesmo comê-la.

A vida seguia seu curso e, em meus sonhos, eu me via como um mecânico de destaque. Alegria contagiante me invadia aos sábados à tarde, quando limpávamos a oficina, e recebíamos, como forma de gratidão, um pequeno pagamento do proprietário pelos nossos esforços.

Entretanto, um episódio que já citado na narrativa, mas que mantive em segredo por receio de não poder voltar atrás, pôs fim ao meu sonho. Junto ao local havia uma ferraria, onde um habilidoso ferreiro moldava o ferro. Um dos mecânicos me pediu para pegar uma lâmpada e colocá-la em nosso trabalho, mas, por falta de experiência, acabei pegando a lâmpada que estava acesa e quente. Temendo que ela caísse e quebrasse, encostei-a em meu peito. O calor excessivo queimou minha pele e fez com que a camiseta grudasse no peito. Para evitar admitir a dor, suportei e retornei para casa sem contar aos meus pais. Após alguns dias, a queimadura ficou infectada e agora tenho uma cicatriz que marca de forma bem evidente o meu peito.

Outra situação que influenciou na decisão dos meus pais foi algo pitoresco, mas que teve um peso significativo. Como éramos muitos jovens, era inevitável que, nos momentos de folga, nós brincássemos de mocinhos e bandidos, esconde-esconde. Em uma dessas pausas, um dos colegas decidiu colher um pêssego atrás da oficina. Havia poucos frutos na árvore e eles estavam no topo.

Estávamos todos de olho e esse colega, optou por jogar um espeto de madeira para tentar derrubar o pêssego. Nós, que estávamos embaixo, esperávamos para pegá-lo. No meio de nós estava uma criança de aproximadamente 6 anos, filho do ferreiro, que também esperava ansiosamente. Ao lançar o espeto, ele deu um movimento de retorno e acertou a nuca da criança, causando um corte profundo e muito sangramento. Como sempre acontece nessas situações, alguns fugiram, outros tentaram ajudar, e o pai da criança foi chamado.

No calor do momento, buscando justiça pelo ocorrido com seu filho, ele identificou o autor e jogou um cano de ferro em sua direção. O menino escapou por um triz, percebendo o nervosismo do pai, e provavelmente está "correndo até hoje".

Essa época foi realmente um sucesso! Vamos imaginar três oficinas mecânicas na Vila, cheias de mecânicos habilidosos e aprendizes ávidos por aprender. O primeiro deles, conforme minhas lembranças, era um senhor vindo de Ijuí-RS, terra do famoso jogador Dunga, e com uma forte influência da cultura alemã. Esse senhor tinha um apelido engraçado, que era o nome de um medicamento, "penicilina", acredito que em virtude de sua capacidade “curativa dos carros”, já que era um verdadeiro mestre quando se tratava de mecânica. Os mais antigos afirmavam que ele era capaz de colocar qualquer veículo no ponto certo e fazer a limpeza dos carburadores como ninguém, afinal, naquela época, a experiência e a audição eram as únicas aliadas para detectar problemas mecânicos, já que equipamentos especializados eram raridades.

Esse talentoso mecânico morava próximo à nossa casa e tinha sua oficina anexa à sua residência, onde sustentava sua família, composta principalmente por mulheres. Ele tinha apenas um filho, meu colega de infância, um pouco mais velho que eu, e que também seguiu os passos do pai na profissão. Já suas filhas seguiram caminhos diferentes, algumas se dedicaram à área da educação, sendo que uma delas até foi professora do primeiro ano da minha irmã mais velha e minha colega de profissão posteriormente. Uma delas, inclusive, está morando em Curitiba, e parece estar muito feliz em sua nova cidade. Ainda tenho vivas em minha memória as lembranças desse senhorzinho, já idoso, que depois de sofrer um AVC ficou com sequelas que afetaram sua locomoção e fala. Sempre que passava por ele, procurava puxar uma conversa e, em muitas ocasiões, parava para observar debaixo de sua casa uma mesa de madeira resistente e escura, tingida pelo óleo e pela graxa, onde eram postos diferenciais, caixas de câmbio e motores para serem retificados. Além disso, muitas peças antigas ainda se encontravam espalhadas pelo ambiente. Outra lembrança que me ocorre é de uma viagem que fizemos juntos, eu, meu pai, esse senhor e seu filho, dentro do Fusca azul de 1972 do meu pai, até Ijuí. Meu pai foi indicado por esse senhor para realizar uma venda de dormentes para a linha férrea naquela cidade.

Os outros mecânicos da vila, inicialmente, trabalhavam em conjunto. No entanto, com o crescimento do negócio, um deles decidiu seguir seu próprio caminho e construiu seu próprio estabelecimento. Até hoje, seus familiares mantêm essa empresa em funcionamento. Em uma comunidade em franca expansão, as oportunidades são abundantes, e esses dois mecânicos souberam aproveitá-las. Além de serem talentosos em suas profissões, ambos possuíam habilidades culturais e esportivas.

O mecânico de Cunha Porã era um mestre em tocar “flauta” e um jogador sofrível nas quatro linhas. Nas horas vagas, ele se arriscava como goleiro e, para nossa surpresa, acabou se consagrando campeão do torneio de inauguração da quadra poliesportiva da vila. Claro, ele contou com toda a sua coragem e um pouquinho de ajuda das cornetas dos companheiros para se tornar um verdadeiro pegador de pênaltis. Afinal, não é todo mundo que possui essa habilidade sobrenatural, não é mesmo?

Lembro-me dele apresentando uma dupla sertaneja composta por parentes em uma festa da Padroeira. Infelizmente, também recordo do falecimento de seu irmão em um acidente envolvendo um caminhão carregado de toras de madeira. Assim como outras atividades da vila, a oficina mecânica também começou a entrar em declínio. O mecânico, agora casado com uma filha de uma família tradicional local, precisava buscar novas oportunidades. Primeiro, ele mudou sua área de atuação para o transporte e partiu para o Mato Grosso do Sul, uma cidade conhecida por suas belezas naturais, que a tornam um dos principais destinos turísticos do Brasil. Hoje, ele vive lá com sua amada esposa, já sua filha, minha aluna do Ensino Médio, se tornou uma advogada renomada e atua em nossa região.

O talentoso mecânico, vindo das terras solenes do Sul, onde palmeiras, mate e a renomada Carijo da Canção Gaúcha Nativa reinam soberanos, desembarcou em nossa estância. Apesar de ter feito uma fugaz viagem à sua antiga morada em algum momento, ele decidiu fincar raízes neste lugar, formar sua família e criar uma nova geração de talentosos mecânicos. Esses habilidosos profissionais, incluindo seu próprio filho, agora exercem essa nobre ocupação em nossa cidade e por todo o Brasil, assumindo o papel de verdadeiros "médicos" dos veículos. Dotados de mãos habilidosas, olhares perspicazes e ouvidos atentos, estão sempre prontos para diagnosticar e trazer uma segunda vida aos problemas mecânicos.

Além de suas habilidades com ferramentas e seu cuidado impecável com veículos, o mecânico trazia consigo um talento extraordinário para o esporte. Ele era um jogador de nível superior, campeão em inúmeros torneios representando nossa Vila, e até mesmo levou o título regional para o Município de Marmeleiro. Contudo, sua verdadeira virtude era a dança. Ao lado de sua esposa, ele se tornou o melhor professor do ritmo, deixando sua marca em festas juninas, na perigosa dança do facão e no famoso CTG (Centro de Tradições Gaúchas), que foi o pioneiro na preservação dessa tradição e, por que não dizer, o seu idealizador.

Enquanto crescia profissionalmente na mecânica, graças à sua experiência e dedicação, ele também se destacou em outras áreas, inclusive na política. O mecânico exerceu o cargo de vereador, representando nossa vila junto ao legislativo de Salgado Filho, em um tempo em que os vereadores não eram remunerados. Ele sempre esteve em busca de criar algo novo, e tive a honra de estar ao seu lado em diversas dessas ações. Entre elas, destaco a criação do CODEFS - Conselho de Desenvolvimento para o nosso local -, que foi o marco inicial para a criação do nosso Município.

Não posso deixar de mencionar a incrível experiência que tivemos ao realizar uma pesquisa eleitoral durante as eleições presidenciais de 1989, a primeira após o período de redemocratização do nosso país. De maneira inovadora, elaboramos cédulas e uma equipe de jovens corajosos percorreu as casas coletando as opiniões do povo. Após minucioso escrutínio e organização dos resultados, após a eleição, ficamos surpresos ao constatar que eles estavam muito próximos dos resultados oficiais. Foi uma prova de que a voz do povo é poderosa e precisa ser ouvida!

Além disso, quando eu exercia a presidência do Grupo de Jovens, tivemos o privilégio de organizar festividades memoráveis, especialmente para o Dia das Crianças. Nossas celebrações foram recheadas de emoção e diversão. Pipoca estourando, algodão doce adocicando o ar, e para completar, a presença encantadora dos personagens da Disney, proporcionada por dedicados adolescentes que se voluntariaram para trazer alegria às nossas crianças. Essas festas se tornaram um marco especial na nossa história, pois demonstraram o quanto éramos capazes de unir esforços e levar felicidade àqueles que mais precisam.

Em mais um nobre empreendimento do Grupo de Jovens, foi erguida uma residência para uma senhora carente que vivia nas proximidades da escola. Participando ativamente desse projeto, esse senhor se juntou a nós. Infelizmente, no dia em que essa senhora veio a falecer, nos deparamos com a forte tradição religiosa de não celebrar o funeral na igreja, pois ela não frequentava. Determinados a garantir que ela fosse sepultada com dignidade, buscamos uma urna e encontramos um túmulo abandonado para que pudéssemos realizar o ato fúnebre. O transporte do corpo foi feito com reverência em seu antigo veículo, uma Belina marrom.

Este veterano de setenta anos, que atualmente ostenta o título de cidadão honorário de nossa cidade, divide seu tempo entre o papel de ministro na Igreja e suas peripécias no campo de futebol. Além disso, mantém um diálogo franco e constante com sua esposa, uma parceira tradicionalista que também se dedica ao bem-estar da terceira idade. Seus filhos, por sua vez, seguem em seus próprios caminhos, orgulhando-se do pai que não mais lhes impõe regras, mas diverte-se com seus netos e vibra apaixonadamente pelo nosso adorado time, o colorado. Sem dúvida, ele também deve expressar sua indignação diante da TV quando o Técnico escala algum jogador que não lhe agrada.

Em sua mente, devem ecoar os momentos difíceis que enfrentou, mas certamente ele se recorda com vivacidade da criação do CTG em sua oficina, da gravação do famoso Alô Tchê em 1986. Seus tempos de vereança, as festas juninas, o futebol e a participação na Comissão de Emancipação ao lado de suas andanças pelas estradas precárias da Vila do Povo Feliz, divulgando reuniões em seu Buggy, também são lembranças que mantêm sua memória viva.

Como Jesus nos ensinou, o homem não sobrevive apenas de pão. Ser feliz é estar em sintonia com o seu tempo e agir da melhor forma possível. Sem dúvidas, este senhor é um dos maiores entusiastas deste lugar, tendo transformado sua vida em um legado em prol da tradição e desenvolvimento.

Contar as aventuras daqueles que fazem é uma tarefa simples, porém desafiadora é criar histórias para aqueles que passam despercebidos, que se sentem injustiçados por serem esquecidos. No entanto, é reconfortante pensar que sempre haverá algo positivo para se dizer sobre eles. É por essa razão que continuarei a escrever sobre todas as personagens deste lugar no meu blog, apresentando desde as histórias mais simples até as mais notáveis.

Um Sonhador Caminhando com Francisco




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