Antes da chegada da eletricidade em 1977 na nossa querida Vila do Povo Feliz, nossa diversão suprema consistia em assistir a filmes e aguardar ansiosamente a vinda anual de um circo itinerante que se instalava por 15 gloriosos dias. Essa era uma época de pura magia e encantamento, onde tanto as apresentações circenses quanto os filmes nos transportavam para um mundo de fantasia, para além das interações humanas cotidianas. A chegada do circo era uma verdadeira festa para nós, criançada! Geralmente era o Circo Áurea, Gávea e Zanchettini que se estabeleciam na região próxima à Igreja Católica, em um espaço em frente ao poço, construído pela empresa responsável pela terraplanagem da rodovia BR 280 e posteriormente onde fica a torre da antiga Telepar.
Este período era um verdadeiro presente para a nossa comunidade, uma fuga do mundo real rumo ao reino do entretenimento. Até a chegada da eletricidade, éramos cativados pelo brilho dos holofotes, pela habilidade dos artistas circenses e pela magia insondável dos filmes que proporcionavam um vislumbre de um universo além das nossas expectativas mais grandiosas.
No entanto, assim como a eletricidade iluminou nossa Vila e trouxe ao nosso alcance um novo mundo de maravilhas tecnológicas e inovações, a saudade dessas simplicidades do passado ainda persiste. É uma nostalgia que nos faz apreciar a beleza das relações humanas e valorizar os momentos de encantamento e deslumbramento proporcionados pelas artes circenses e cinematográficas.
Essas atividades culturais, nos remetem ao talento e genialidade de um Sr. que se dedicava ao conserto de rádios. Com uma habilidade fora do comum para as tecnologias da época, ele se tornou um verdadeiro precursor das transmissões radiofônicas na vila. Junto com o filho do Farmacêutico e proprietário da Rodoviária local, os dois conseguiram montar uma Rádio improvisada, que logo estava no ar, presenteando a comunidade com uma programação diversificada, incluindo até mesmo o animado "Arraia do Pendura". No entanto, a alegria durou pouco, pois, naquela época sombria da Ditadura Militar, em meio ao temido AI-5, essa iniciativa inspiradora foi fechada.
Mas esse senhor não abdicava de sua criatividade e como colorado de quatro costados. Ele era tão fanático pelo time que foi o único morador a gravar a final do brasileirão de 1975. Mesmo com a qualidade duvidosa da transmissão, ele conseguia ouvir a narração de Armindo Antônio Ransolin e os comentários de Belmonte, Lazie Martins, Lauro Quadros e Rui Carlos Osterman.
Esse mestre dos consertos, chegou à vila vindo da região de Itá-SC. Acredito que tenha chegado antes mesmo de sua esposa e filhos. Lembro-me deles morando em uma casa de nossa propriedade por um tempo, até que conseguissem a sua própria casa. Eram um casal com dois filhos. A esposa, era professora.
Essa professora vinha de Erechim e tinha uma irmã muito respeitada na área da educação naquela cidade. Assim como todas as famílias da vila, eles tinham oportunidades de crescimento e ocuparam seus lugares na sociedade. A professora até concorreu a vereadora nas eleições de 1976, obtendo uma boa votação, mas ficando como suplente. Lembro-me dos bonés vermelhos que ela mesma confeccionou para sua campanha, com a sigla do partido. Nós, crianças, adorávamos colar os santinhos nas bicicletas, independente dos candidatos, já que havia outro candidato que se elegeu vereador e, posteriormente, se tornou o primeiro prefeito de nosso município.
Esse senhor não se contentava apenas em consertar rádios, ele era um verdadeiro mágico das tecnologias da época. Tanto é que adquiriu uma máquina de passar filmes, alimentada por bateria, e no clube da vila havia um motor a diesel que gerava energia e permitia seu funcionamento. Quem poderia esquecer dos inesquecíveis filmes do Teixeirinha (Pobre João, Coração de Luto), Menino da Porteira...? Era uma festa sem tamanho poder assistir aos gols do Pelé de bicicleta no Cosmos no Canal 100, que eram exibidos antes dos filmes. Durante as sessões, sempre havia uma pausa para trocar o rolo - afinal, os filmes normalmente eram divididos em duas partes. Nesse momento, nós aproveitávamos para comprar pipoca, refrigerantes e doces na “bodega”. Era uma diversão garantida!
Claro, nem tudo saía conforme o planejado. Em algumas ocasiões, algum espertalhão desligava o motor e ficávamos ali esperando pacientemente até que ele fosse ligado novamente. Em uma situação inusitada, a caixinha com o dinheiro da venda de ingressos foi roubada durante uma dessas paralisações.
No entanto, o cinema itinerante não era exclusivo da nossa humilde vila. Esse senhor corria o interior de Salgado Filho, Palma Sola, Barracão, Dionísio Cerqueira e Marmeleiro, espalhando entretenimento para as famílias.
Como em tantas outras profissões e, especialmente, nesse campo em particular, com o surgimento da televisão, a demanda por conserto de rádios foi diminuindo. Os filhos dele, também, começaram a buscar seus próprios caminhos.
Felizmente, graças à profissão da esposa e à sua própria habilidade, eles conseguiram se manter. Por um tempo, ele até trabalhou em uma oficina eletrônica em Francisco Beltrão, onde dividiu moradia comigo e alguns colegas, na república “100 comentários” que montamos para morarmos em virtude de nosso trabalho e estudos.
Lembro-me do filho desse senhor, que era um gênio dos carrinhos de rolimã e me transporta para um universo de criatividade deslumbrante. Sua habilidade, não apenas na construção dos carrinhos, mas também como lateral esquerdo, é algo que sempre admirei - mesmo eu sendo destro. Fui impulsionado a seguir seus passos no futebol, inspirado por seu talento que se assemelhava ao célebre Éder Aleixo, meu ídolo do Grêmio, mesmo ele jogando pelo time rival do meu colorado.
Além disso, sua sagacidade em criar apelidos era espantosa. Naquela época, o bullying normalmente se transformava em sátira, já que era uma maneira de proteger os sentimentos daqueles atingidos e impedir que se espalhasse.
Coincidentemente, a filha desse casal foi minha colega de escola e, seguindo os passos da mãe, tornou-se uma professora. O rapaz retornou à cidade em algum momento e agora reside na região.
Infelizmente, os pais já se foram deixando-nos com muita saudade. Suas habilidades foram fundamentais em um período em que tínhamos poucas opções culturais.
Os Circos, ah, como eles despertaram o lado artístico em tantas crianças naquela época! Após sair das tendas, nos sentíamos inspirados a reproduzir os incríveis números que vimos, brincando com os colegas. Claro, havia algumas coisas que não podíamos arriscar, como jogar facas ou soprar fogo, mas o malabarismo, mesmo que de forma limitada, era algo que nos desafiávamos a fazer. No entanto, o verdadeiro destaque era o palhaço, o querido "pirulito", que encenávamos com toda animação e brilho que tínhamos. A paixão por esses momentos era tão intensa que alguns moradores da Vila decidiam seguir nesse caminho, acompanhando a equipe circense. Isso só mostra o quão forte era essa cultura em nós. E além das incríveis apresentações dos profissionais do circo, tínhamos também a oportunidade de assistir a duplas sertanejas, como Canário e Passarinho, que me lembro de ouvir cantando "Coração de Pedra".
Essas experiências no circo realmente foram um ponto alto em nossas vidas, despertando nossa criatividade e alimentando nossa paixão pela arte de forma incomparável.
Como é maravilhoso recordar de uma época em que os recursos eram escassos; muitos pais não podiam pagar os ingressos, e era comum ver pessoas tentando se esgueirar por debaixo da lona do circo, ou se oferecendo para trabalhar nas apresentações vendendo pipoca, amendoim, tudo para poder vivenciar aqueles momentos mágicos.
Hoje, em minhas memórias, vagueiam lembranças de acontecimentos que jamais retornarão, mas que indubitavelmente me auxiliaram a compreender as dinâmicas sociais, as vantagens de uns e as dificuldades de outros, e a importância fundamental da empatia na construção de um mundo mais justo.
Fico imaginando como seria o paraíso se todos nós pensássemos apenas em nós mesmos, sem nos importarmos com o bem-estar do próximo. Qual seria o sentido da oração se não agirmos em prol dos nossos irmãos? Seria extremamente simplista pensar que sou uma pessoa boa porque rezo e não faço mal a ninguém.
Porém, também não uso minhas habilidades para facilitar a vida do outro. A cada dia que passa, percebo que o verdadeiro divino não possui uma forma física, mas sim age de maneira intrínseca em nossos corações, contribuindo para nossa evolução como seres humanos.
Portanto, sou grato a todos os circos que cruzaram o meu caminho, aos filmes que tive o privilégio de assistir, aos livros que pude saborear. Não apenas por todo o conhecimento que me foi transmitido, mas também pelas oportunidades que me proporcionaram enxergar o mundo de forma diferenciada, algo reservado apenas para as mentes mais abertas.
Um Sonhador Caminhando com Francisco – Escritor do Blog https://www.caminhandocomfrancisco.com/
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