
Nos anos 70, encarar uma viagem para visitar os parentes gaúchos era um verdadeiro desafio. Saíamos de casa bem cedinho, munidos do famoso sanduíche feito pela nossa talentosa mãe. O almoço? Ah, esse era em Chapecó, porque depois tínhamos que encarar a estrada rumo a Goio-Ên, subindo uma serra íngreme com uma curva desafiadora até chegar em Nonoai.
Era lá que fazíamos uma pausa para admirar a magnífica Igreja dos Beatos Manuel e Adilio. E assim seguimos viagem, até finalmente chegarmos em Constantina, lar de avós, tios, primos e muitas histórias. Era tradição avisar aos parentes com antecedência sobre a visita, em uma carta cheia de respeito e carinho. Saudações fraternas abriam o texto, que era finalizado com uma chuva de bênçãos enviadas pelos remetentes.
Essa viagem com certeza foi especial. Meu pai havia adquirido um TL 1600, preciosidade quase nova, equipada com um toca-fitas e as fitas que me lembro eram dos talentosíssimos Cobras do Teclado, além das clássicas músicas do Teixeirinha e Mary Teresinha. O carro estava impecável, bem cuidado, mas seu motor aspirado a ar gerava um calor insuportável, o que exigia que fosse conduzido com muita calma.
E como éramos um grupo de seis pessoas, a cautela era ainda maior. Quando estávamos próximo de Pinhalzinho - SC, a fome já estava nos consumindo. Sonhávamos com um restaurante, onde poderíamos matar a sede com uma gasosa de framboesa gelada e devorar um suculento churrasco, mas sabíamos que precisávamos conter a gula já que a parada ocorreria logo adiante.
Mas o destino tinha outros planos para nós. Um pneu estourado nos forçou a fazer uma parada não planejada e prolongada. Meu pai, com sua habilidade, escolheu um posto de gasolina onde poderíamos almoçar e comprar um novo pneu.
E foi nesse momento de contrariedade que a intervenção divina aconteceu. Por sorte, encontramos uma alma abençoada no posto de gasolina, cujos familiares eram de Palma Sola - SC e da nossa querida Vila do Povo Feliz. Essa feliz coincidência facilitou muito a situação, já que meu pai precisava pagar o novo pneu com um cheque. O fato de sermos de um local próximo de onde o funcionário anteriormente residia acabou nos ajudando bastante.
E assim, com um pouco de criatividade e inteligência, nossos problemas se transformaram em uma oportunidade de conexão humana e solidariedade mútua. A vida sempre encontra formas de nos surpreender, mesmo nos momentos mais inesperados.
Após o almoço, continuamos nossa viagem e nos hospedamos na casa do meu tio, que era casado com a irmã da minha mãe. Ele era um grande amigo do meu pai desde os tempos de infância e adolescência, quando juntos embarcavam em inúmeras aventuras, como subir em árvores na esperança de chamar a atenção das moças e conquistar um olhar romântico.
Nos dias seguintes, visitamos outros parentes, incluindo meus avós, que nos presentearam com um saco de caquis de chocolate - uma verdadeira delícia. Também fomos à antiga casa do meu avô, onde morava um dos meus tios. Enquanto meu irmão mais novo brincava dentro do carro, todos nós, minhas irmãs, primos e eu, nos divertíamos no quintal da casa.
Nossos pais e tios aproveitavam a sombra de uma árvore para conversar e tomar chimarrão. De repente, o carro desceu a ladeira em baixa velocidade, porque meu irmão um “motorista sem limite”, acionou a alavanca do carro deixando em ponto morto. Por sorte, ele parou em um arbusto, sem causar nenhum dano. Só restou o susto do inexperiente motorista e uma história para contar.
Numa emocionante saga pela vida, o brilhante indivíduo que desbravou o extremo oeste de Santa Catarina com o intuito de sustentar sua jovem família optou por voltar à acolhedora Vila Povo Feliz e aqui fincar raízes.
Durante um grande período, ele se dedicou incansavelmente ao trabalho em um posto de combustível, onde foi capaz de estabelecer conexões com incontáveis pessoas. Ao lado de seu irmão, eles deixaram uma marca duradoura, seja pelo excelente atendimento oferecido ou por sua empatia ante aos problemas sociais da vila.
Minha mente se inunda de memórias do tempo em que eu mesmo atuei como aprendiz de mecânico, com ele gentilmente me entregando as peças e parafusos que eu precisava para realizar os pedidos dos mecânicos.
Por um tempo, ele mergulhou de corpo e alma na indústria moveleira, adentrando o universo das entregas de produtos no Rio Grande do Sul. Se viu inúmeras vezes arrastando peças de móveis por quarteirões afora, desafiando as adversidades do estacionamento.
E se não bastasse, trazia consigo verdadeiros desafios físicos ao subir escadas com beliches nas costas, enfrentando a batalha de montá-los corretamente, já que muitas vezes as peças se recusavam a se encaixar. Foram tempos de extrema dificuldade, mas breves, precedendo a emancipação do Município, em que as dificuldades eram como uma praga que assolava toda a vila.
Vem-me à memória sua caligrafia, elegante e distinta. Tudo isso antes de trilhar os caminhos do serviço público, onde atuou por muitos anos como motorista do setor de saúde do município, ocasionalmente adentrando também a Secretaria Municipal de Esportes.
Além de demonstrar um talento excepcional em suas atribuições, ele se destacava como um voluntário exemplar, assumindo posições de liderança como Patrão do CTG, presidente da Igreja Católica e influente no cenário esportivo. Apaixonado pelo Grêmio e esforçado como lateral direito nas horas livres, ele deixou sua marca no renomado time local do Botafogo, sendo até campeão com o time do Posto no Torneio de inauguração da Quadra poliesportiva da vila.
Nessa ocasião, além do goleiro que já mencionei na narrativa anterior sobre as peripécias dos mecânicos da vila, houve uma situação cômica em uma época em que possuir uma bola era algo grandioso. O dono da bola tinha o privilégio de escolher em qual time jogaria, mesmo que não fosse muito habilidoso. Nessa história, o torneiro mecânico não era bom de bola, mas, como era o proprietário da bola, sempre chegava com ela embaixo do braço ditando as regras. E se alguém ousasse insultá-lo por sua ineficiência, ele simplesmente pegava a bola, a colocava embaixo do braço e ia embora, deixando os colegas desamparados.
Ah, como é impossível esquecer sua dedicação e responsabilidade na organização impecável do FEMUSUL, ao lado de minha esposa e outros colegas memoráveis, evento que se encerrava na madrugada quando, com um último pagamento efetuado e as portas fechadas, marcávamos o fim dessa grandiosa jornada.
Lembro-me de uma ocasião em que tivemos uma experiência social incrível. Decidimos doar um guarda-roupa para uma vizinha nossa, que vivia perto da escola e enfrentava a esquizofrenia. Ao invés de apenas entregar o móvel, era necessário desmontá-lo em nossa casa e montá-lo novamente em sua residência. Foi uma verdadeira aventura! Para esse notável senhor. Com certeza, até hoje, ainda existem alguns parafusos perdidos pelo chão, fruto do desafio de juntar as peças de um guarda-roupa antigo, mas perfeitamente utilizável. Essa experiência mostrou que mesmo nas tarefas mais simples, podemos transformar a vida das pessoas e fazer a diferença. E olha, valeu a pena cada parafuso caído!
Uma das características marcantes desse senhor era sua habilidade impecável de tocar o sino sempre que ocorria um falecimento na vila ou no já Município. Com nove badaladas precisamente ritmadas, ele marcava o momento solene e, quando era o triste adeus a uma criança, as badaladas ganhavam um ritmo mais lento e suave.
Além disso, uma coincidência notável aconteceu no cemitério local, onde nossos pais chamavam-se Ernesto e foram sepultados frente a frente, como se suas vidas estivessem entrelaçadas além da morte.
A habilidade excepcional desse homem ia além de sua perícia com o sino. Ele possuía um talento singular para escolher os lugares onde os entes queridos seriam sepultados, uma tarefa delicada e melancólica que exigia responsabilidade em momentos de profunda tristeza. Sua abordagem inigualável e astuta para eternizar os momentos finais da vida não apenas comovia, mas também deixava uma marca indelével na memória de todos os envolvidos.Já a habilidade única de sua esposa brilhava como um farol em nossa comunidade. Ela deixou seu nome na história ao ser a pioneira na direção da escola e da creche municipais. Além disso, durante os tempos sombrios do regime militar, ela levou a luz da educação aos idosos de nossa vila através do programa de alfabetização do Governo Federal, MOBRAL. Com sua dedicação paciente e inteligente, ela abriu as portas do conhecimento e trouxe significado para as letras, transformando vidas para sempre de muitas pessoas, que não tiveram oportunidade de estudar em sua infância.
E não posso deixar de mencionar a sua filha, que se destacou como uma das colaboradoras mais competentes e leais durante minha gestão como prefeito. Enquanto os seus outros filhos seguem o seu legado, exercendo funções nas entidades e demonstrando a importância da formação familiar na continuidade do processo cultural, a sua família possui um aspecto peculiar relacionado ao futebol. Até os netos estão envolvidos, sendo que uma das netas é a melhor amiga do meu neto. Isso mostra que as amizades se irradiam de forma sublime, quando há sutileza, respeito e religiosidade, as energias se unem e tornam a vida mais significativa. É gratificante observar hoje o sucesso dos seus filhos nas ações que empreendem.
Sem dúvidas, a viagem que compartilhamos quando éramos crianças foi um capítulo especial em nossas memórias, um momento em que nossos corações batiam freneticamente e nossas mentes não podiam compreender a magnitude daqueles tempos maravilhosos.
Não há dúvidas de que a mão divina sempre nos guia quando estamos abertos para receber as bênçãos que ela nos oferece. Essa história é uma combinação de eventos que o tempo se encarregou de rearranjar, transformando uma simples viagem em uma grande amizade.
Mesmo que não nos visitamos, a admiração mútua perdura e se solidifica através das boas lembranças que construímos juntos ao longo de nossa história. É com imensa gratidão que eu vejo essa família como uma verdadeira irmandade, compartilhando ideias e buscando construir um mundo melhor, onde cada pessoa possa se desenvolver no seu próprio ritmo, sem imposições.
Hoje, nossos queridos companheiros estão desfrutando das delícias da aposentadoria, aproveitando ao máximo a presença dos filhos e netos. Eles se envolvem ativamente nas festividades da comunidade local, inclusive brilhando nos bingos da Paróquia e, é claro, encontrando aquele aconchego nostálgico ao navegarem pelo meu blog e reviverem as memórias felizes que construímos na adorável Vila do Povo Feliz.
Um Sonhador Caminhando com Francisco - Escritor do blog https://www.caminhandocomfrancisco.com/
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