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HISTÓRIAS DA VILA DO POVO FELIZ (16): FAMÍLIA RIGHES

Atualizado: 21 de fev. de 2024


Numa época remota, nos idos dos anos 50, uma família de ascendência italiana rumou para o estado do Paraná, deixando para trás os encantos do Rio Grande do Sul. Sua busca incansável? Uma terra fértil onde pudessem vislumbrar prosperidade. No vale que mais tarde daria origem à cidade de Salgado Filho, encontraram um refúgio promissor. Assim como tantas outras famílias, migraram em busca do sonho de arar terras promissoras, vendidas por colonizadoras dedicadas a fomentar o crescimento da região. Mas não era tão simples.

Naquele tempo, a área estava envolta por densas matas. A tarefa de transformar aquele cenário em terra cultivável era árdua, exigindo coragem e juventude para enfrentar a vastidão da vegetação, munidos apenas de machados e serrotes. As colonizadoras facilitavam a compra de terras, e os recursos provenientes da venda de propriedades nos locais de origem permitiam ampliar a área adquirida, já que os preços eram mais acessíveis.

É claro que os obstáculos da viagem eram inúmeros: a jornada exaustiva em pequenas carroças ou caminhões, atravessando o Rio Uruguai; as famílias numerosas que enfrentavam dias de privações para encontrar um lugar para descansar; a higiene pessoal precária, com uma alimentação basicamente composta por pão, queijo, salame e um bicchiere di vino.

No momento da chegada, os obstáculos permaneciam, já que as habitações eram frágeis, cobertas por tabuinhas. Costumava ser uma prática comum que alguns parentes viessem antes para construí-las, cavar poços e abrir estradas de acesso.

As empresas colonizadoras, com seus tratores de esteiras, auxiliavam nesse processo, mas demandava uma enorme determinação e esforço. A derrubada das árvores era uma tarefa demorada, seguida pelo enleiramento e transporte com juntas de bois. Também era necessário remover as raízes para o primeiro plantio, que, normalmente, apresentava uma baixa produção.

A alternativa encontrada era cultivar milho para a polenta, feijão e trigo, enquanto soltavam os porcos para consumirem o milho que restava. Isso gerava carne e recursos em sua comercialização, possibilitando a compra de sal, querosene, ferramentas, tecidos...

A produção de cachaça e fumo para palheiro (cigarro feito com fumo envolto em uma palha) eram feitas na própria propriedade ou trocadas com vizinhos por outros produtos ou dias de serviço.

As mulheres eram encarregadas da alimentação, cuidados domésticos, confecção de roupas e chapéus, enquanto os homens trabalhavam incessantemente nos campos. Mas quando encontravam um tempinho livre, as mulheres também enfrentavam o desafio de trabalhar em áreas íngremes e cheias de pedras.

Para superar o sofrimento físico, a oração e as cantorias italianas serenavam as almas desses corajosos pioneiros que ansiavam conquistar sua independência e oferecer uma vida melhor para suas próprias famílias do que aquela que haviam vivido até então.

A história da família desta narrativa foi repleta de desafios, a sua chegada à Vila de Salgado Filho. Nessa comunidade, eles ajudaram na construção da Igreja, um marco fundamental para manter sua fé inabalável. Embora o Padre viesse apenas uma vez por mês para celebrar uma missa, eram nesses momentos de comunhão que seus laços se fortaleciam e a jornada ficava mais brilhante.

O objetivo principal dessa família amada era conquistar terras e encontrar uma parceira. Felizmente, eles não tiveram dificuldade nisso, pois havia muitas pretendentes.

No entanto, os filhos mais velhos dessa família encontraram suas almas gêmeas em uma única família cuja história se assemelhava à deles. Assim, eles formaram seus matrimônios e estabeleceram-se com os pais morando próximos. Os irmãos mais novos então dedicaram a atenção necessária ao casal idoso e, é claro, ao longo do tempo, eles também constituíram suas próprias famílias.

Desde cedo, um dos filhos mostrou habilidades de liderança. Ele assumiu o papel de inspetor de estradas, acompanhando e ajudando na manutenção das estradas, um trabalho árduo executado pelos proprietários de terras da região. Salgado Filho pertencia a Barracão, mas quando a emancipação ocorreu, esse senhor se aventurou nos meandros da política. Ele se tornou suplente de vereador e, posteriormente, assumiu a responsabilidade no legislativo municipal. Vale ressaltar que, naquela época, não havia subsídios para essa função e ele tinha que percorrer os cerca de 10 km do local onde morava até a sede da cidade, montado em seu cavalo.

Além disso, assim como na história da família Barreto que já compartilhamos, ele empreendia uma envolvente jornada pela região com seu incrível trilhadeira, oferecendo seus serviços indispensáveis aos humildes agricultores. Esse equipamento, vital para o beneficiamento de suas produções, antes era realizado manualmente com a ajuda de numerosos braços familiares e vizinhos solidários.

Quando se mudaram para a encantadora Linha Pedra Lisa, que ficava mais próxima da acolhedora Vila do Povo da Feliz, essa família maravilhosa passou a frequentar a vila em todas as esferas - seja no comércio, em relação de amizade e, principalmente, nas atividades religiosas, onde também contribuíram para a construção da imponente igreja.Foi na década de 70 que tive a sorte de conhecê-los melhor, pois eles se tornaram clientes fiéis dos meus pais. Desde o primeiro momento, nossa família estabeleceu uma parceria que ia além dos negócios, pois naquela época as relações eram baseadas na confiança mútua. As compras eram feitas conforme a necessidade e o pagamento era acertado na época da colheita. Tudo ficava registrado em cadernos do comerciante, sem a necessidade de assinaturas ou segundas vias.

Aquele foi um período mágico em nossas vidas. Um dos membros dessa família exemplar possuía um Jeep e posteriormente um C-10 branca, em determinado momento, se aventurou assumindo a função de subdelegado - algo impensável nos dias de hoje.

Exercer um cargo de segurança sem armamento do Estado, sem veículos oficiais e sem receber salário, além de arranjar inimigos pelo caminho, demandava uma coragem extraordinária.

No entanto, isso não intimidava esse senhor, que era conhecido por sua aparência marcante - ostentava um pequeno bigode -, seu amor pela música italiana, seu gosto pelos jogos de cartas e, é claro, sua predileção por um cigarro e uma dose de pinguinha. Essas eram as formas que ele encontrava para socializar e obter forças para enfrentar os desafios da vida.

Meu pai estabeleceu uma amizade duradoura com esse senhor, tornando-se além disso, parceiros na Diretoria da Capela Nossa Senhora de Fátima. Apesar da diferença de idade, eles compartilhavam gostos semelhantes, o que tornava seus relacionamentos mais fáceis.

Exploraram incontáveis expedições lacustres “pescarias” às águas dos Rios Manoel Velho, Pedra Lisa, São Bento, Santa Terezinha... e, em uma situação peculiar, aventuraram-se na vastidão da barragem do Rio Passo Fundo.

Em suas jornadas, também se entregaram ao abate de suínos, nunca deixando de enriquecer a despensa com os saborosos embutidos: salames, copas, morcilhas, torresmos, pés e rabos de porco faziam parte do cardápio sagrado desses intrépidos exploradores culinários.

Não podemos deixar de mencionar o delicioso petisco com as iguarias (fígado, coração...) e do churrasco ao meio-dia, sempre harmonizados com vinhos coloniais. Era uma celebração que começava nas primeiras horas da manhã, com uma fogueira ardente e um caldeirão de água fervente para o abate do suíno, e que se prolongava até o anoitecer, quando a língua italiana era o idioma principal usado para se comunicar (Andiamo, amico, buongiorno...).

Eles sempre faziam uma pausa para cantorias e, quando sobrava um tempinho, uma rodada de carteado. Sinto uma certa nostalgia ao lembrar desses momentos, pois eram verdadeiros encontros de amizade, onde nada era pedido em troca além de um pouco de carne e torresmo como agradecimento pelo serviço prestado.

O filho mais velho dessa família era um ser dócil, cuja história contei em um dos relatos sobre as tragédias da Vila do Povo Feliz, onde sua filha foi levada pela correnteza do Rio Pedra Lisa, quando se dirigia a escola.

Esse italiano era forte como uma fortaleza, subia todos os sábados com sua mala de garupa nas costas, feita de um pano listrado vermelho, recheada de queijo e ovos. Sua presença era sempre certa na vila, era moderado na bebida, mas tinha um sorriso generoso, era a inocência em pessoa. Ao retornar, ele levava sal, açúcar e outros mantimentos.

Esse senhor foi um dos principais atendentes da copa nas festas da igreja, ao lado de outros amigos da Linha Pedra Lisa, cujas histórias contarei em algum momento. Sua presença era sempre garantida e o serviço era bem executado.

Aos domingos, eles retornavam à vila para o culto, e sua presença era sagrada. Principalmente porque o irmão mais novo era o Ministro da Eucaristia, sendo o primeiro a exercer essa nobre função na vila. Além de ministro, ele era o melhor leiloeiro de bolos que já passou por essas terras.

Sua esposa, proveniente de uma família tradicional de Palma sola, foi a primeira professora da Escola Municipal Pio X, próxima às residências dessas famílias. Na época, mesmo sendo uma escola multisseriada, ela era o centro da comunidade, desempenhando um importante papel político e social.

Um dos mais novos da família encontrou o amor e se tornou concunhado de uma família também de ascendência italiana igualmente ilustre na comunidade. Enquanto sua irmã permaneceu na deslumbrante Pedra Lisa baixa, ele se instalou na cidade, sempre atuante na igreja e na construção civil.

Sua filha logo se tornou uma das melhores amigas minhas e de minha irmã mais velha, enquanto seu filho se tornou inseparável de meu irmão, principalmente durante as pescarias e as visitas aos tios na Pedra Lisa. Foram nesses momentos que eles viveram experiências extraordinárias, seja caçando com bodoques ou pescando nos rios, ou até mesmo armando arapucas.

Relembrar essa família desperta em mim um turbilhão de memórias de um tempo em que a vida transcorria nos pequenos detalhes, mesmo que sempre houvesse algum obstáculo para superar.

Recordo-me vividamente do dia em que o nono Righês nos deixou, após um longo período de tratamento na capital, já que em nossa região não havia atendimento oncológico à disposição. A espera pelo corpo do nono foi uma agonia interminável, afinal, na década de 70 não tínhamos telefone na vila, o que dificultava enormemente a comunicação.Outra passagem marcante envolveu um problema de saúde na coluna de um dos filhos desse clã. Na época, éramos crianças da mesma idade, e ele precisou utilizar um colete ortopédico por um longo período para corrigir o desvio.

Outra lembrança que me vem à mente é a visita de um sobrinho desse senhor, que por pouco não se tornou uma tragédia. Hoje em dia, ele trabalha como funcionário público na área ambiental ou talvez já esteja aposentado e é casado com uma maravilhosa professora baiana, que tive a sorte de ter como colega de trabalho. Como era comum os primos se visitarem, sempre incluíam a pesca e a caça como itinerário de diversão.

Num desses passeios, enquanto ele disparava um tiro de espingarda contra um alvo, algo terrível aconteceu: a espingarda abriu e o cartucho retrocedeu, alojando-se perigosamente em sua cabeça, bem na área frontal.

Foi um momento de extrema tensão e que causou grande repercussão na vila. Porém, graças a uma intervenção divina, o cartucho apenas penetrou superficialmente na pele, sem causar nenhum dano permanente. Restou apenas a história para contar e as valiosas lições aprendidas - algo que hoje em dia não mais se encaixa como um hobby adequado.

Os laços que eu criei com os filhos e netos desta família foram tão fortes que ultrapassaram os limites da escola. Eles se tornaram meus amigos fiéis, parceiros em todas as aventuras. Um lançou-se por um período no mundo das finanças, desvendando os segredos dos negócios. Outro, corajoso e destemido, escolheu seguir a carreira militar. E aqueles que optaram por permanecer nas raízes, na terra fértil, na agricultura, demonstraram a dedicação e o amor por suas origens. Juntos, construímos memórias inesquecíveis em festas, matinês e inúmeros eventos sociais. É um privilégio ter conhecido e compartilhado momentos com essas queridas pessoas.

Infelizmente, o amigo que escolheu seguir a carreira de policial já nos deixou, mas sua esposa e filhos se tornaram verdadeiros amigos para mim e minha família, e um de seus filhos, neto do ilustre cantador da La bella polenta, agora vive na França.

Essa família é, sem sombra de dúvidas, a personificação do trabalho árduo e da fé inabalável. Esses princípios fundamentais têm sido transmitidos de geração em geração, e vejo a continuidade desses valores nas vidas de seus descendentes, que honram o legado de seus antepassados ao mesmo tempo que constroem seus próprios legados. Eles trilham seus caminhos com segurança, preservando a honra de viverem vidas repletas de amor e respeito.Infelizmente, alguns membros dessa família já partiram, deixando um vazio imenso. Sinto falta dessas personalidades marcantes que estiveram presentes durante minha infância e também me apoiaram ao longo da jornada política. Lembro-me de um momento em que recebi revistas diretamente da Itália, as quais esse senhor adorava ler no dialeto, e também guardo com carinho, uma relíquia (fita em VHS) que ele e um grupo de italianos do nosso amado município cantaram em um programa transmitido por um deputado que apoiava a nossa cidade durante o período em que fui prefeito.

Seja por meio do apoio do voto ou dos conselhos e suporte nos momentos de alegria e tristeza que a política nos proporciona, esses indivíduos especiais verdadeiramente deixaram sua marca em minha vida.

Ter a oportunidade de escrever sobre essa história e ser um participante ativo dela é uma verdadeira honra. Claro, existem inúmeros outros momentos marcantes que poderiam ser narrados aqui, mas o objetivo é manter viva a memória desses eventos na Vila do Povo Feliz.

Não faltará oportunidade para aprimorar essas lembranças, afinal, somos viajantes no tempo e sempre haverá algo novo para buscarmos, a fim de tornar nossas vidas mais leves e plenas de significado.


Um Sonhador Caminhando com Francisco - Escritor do blog https://www.caminhandocomfrancisco.com/

 

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