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HISTÓRIAS DA VILA DO POVO FELIZ (55) - FAMÍLIA MARIN


As tradições familiares e a maneira de ser e pensar nem sempre estão em total harmonia entre os membros de um mesmo clã, mesmo que todos tenham sido criados e moldados de maneira semelhante.

No final das contas, a personalidade de cada um prevalece. Embora sejamos todos centelhas divinas, cada indivíduo vive de acordo com o ambiente em que está inserido, adaptando-se, evoluindo e fortalecendo-se para superar os desafios que a vida nos apresenta.

Enquanto a mente viaja entre passado e futuro - o primeiro já consolidado e o segundo incerto -, o presente é tangível e requer equilíbrio e decisão para fazer escolhas que possam corrigir o passado e moldar um futuro mais promissor.

O desejo ardente de muitos desbravadores era conquistar a independência financeira e, consequentemente, melhorar suas condições de vida.

Para uma família composta por dois irmãos e uma irmã, a jornada rumo à realização desses sonhos começou na região central do Rio Grande do Sul. Passando por diversos lugares, finalmente chegaram à famosa encruzilhada de Salgado Filho, ponto de encontro de tropeiros e safristas em busca de um momento de descontração regado a cachaça. Foi nesse cenário que a família decidiu estabelecer-se e dar início à construção de um futuro próspero.

Um dos irmãos, conhecido por ser um senhor franzino, com seu palheiro e fala mansa, decidiu formar sua própria família ao se casar com uma italiana, cuja irmã também residia nas proximidades e teve uma grande quantidade de descendentes.

A região em que escolheu viver era caracterizada por ter uma parte plana próxima à BR que conecta Barracão a Marmeleiro, e uma parte mais íngreme no fundo.

O outro irmão desta família possuía uma constituição física mais robusta, o que lhe permitiu assumir o papel de subdelegado naquela época.

Uma função de grande importância, porém repleta de perigos, exigindo coragem e habilidade para lidar com conflitos como invasões de animais em propriedades vizinhas, disputas de limites territoriais e pequenos furtos.

Ele era responsável por resolver essas questões de forma legal e eficaz, mesmo que isso significasse enfrentar futuras complicações e lidar com transporte próprio, seja a cavalo ou em um jeep, para comparecer aos eventos necessários.

Porém, com esse senhor, não existia situação difícil. Sempre que solicitado, ele prontamente atendia, pois conhecia cada canto da Vila.

Com a chave da cadeia em mãos, ele resolvia a maioria dos conflitos com sabedoria. Além de ser o subdelegado, ele também foi o primeiro taxista da vila e um respeitado comprador de gado, o que lhe rendeu amizades com a maioria dos moradores.

No entanto, ele sempre mantinha uma linha clara entre suas funções; a autoridade sempre estava acima de qualquer laço social, evitando conflitos de interesses.

Os irmãos vizinhavam com a irmã Helena, uma devota fervorosa de Nossa Senhora de Fátima e juntamente com sua cunhada faziam parte do coral da igreja e se dedicavam às festividades, transmitindo paz e espiritualidade com suas vozes magníficas.

Enquanto o irmão mais velho apreciava seu mate, fabricando sua própria erva, a família se reunia em casa para momentos de união e conversas leves.

Mesmo em uma residência simples, conseguiu juntamente com sua esposa transmitir valores preciosos aos filhos, que se aventuraram na produção avícola e na criação de gado.

Enquanto a maioria dos membros da família buscava oportunidades em outras cidades em meio à decadência da Vila nos anos 80, alguns optaram por permanecer próximos, mantendo vivos os laços familiares e os ensinamentos recebidos de seus antepassados.

Guardo com clareza na memória as visitas do ilustre senhor aos sábados à tarde, quando ele atravessava a Vila e fazia uma parada no comércio de meus pais.

Sua voz suave era acompanhada de relatos ricos em detalhes e repletos de fatos do passado, contadas com a maestria de um verdadeiro contador de histórias.

Ele descrevia com precisão cada obstáculo enfrentado desde a partida do amado Rio Grande, até a chegada às vastas florestas e escassas habitações, onde a determinação e esforço eram essenciais devido à distância que separava os recursos básicos como educação, saúde e comércio.

A convivência com a fauna selvagem da região era um desafio constante, requerendo cautela e vigília, pois muitos animais habitavam esse lugar.

Além disso, as questões interpessoais também apresentavam dificuldades, pois a resolução de conflitos muitas vezes envolvia o uso de armas ao invés do diálogo, tornando o convívio social uma tarefa árdua.

O seu irmão por sua vez revelava em sua personalidade uma determinação feroz, abstendo-se de vícios como álcool e tabaco.

Sua ousadia era sua marca registrada, jamais recuando em situações de confronto, seguindo à risca a tradição gaúcha.

Essa postura lhe garantiu respeito e autoridade em suas funções públicas. Adorava compartilhar suas experiências, complementando as narrativas do irmão.

Nossas conversas costumeiramente aconteciam no CTG e no banco em frente ao Posto Arisi.

Todos os dias, ele chegava em sua picape amarela, acompanhado de seu inseparável buldogue tigrado, que era conhecido por toda a vila.

Mais tarde, ele passou a desfilar pelas ruas com seu reluzente Corcel II marrom recém-comprado na concessionária, o que sempre causava um pequeno alvoroço com o taxista e o dono do bar próximo ao posto.

Ambos tinham um Corcel II da mesma cor e ano, resultando em breves paradas e trocas de olhares curiosos, já que era comum a confusão na hora de sair com o carro. E assim, a cada encontro, a situação se tornava ainda mais engraçada.

Durante o seu mandato como subdelegado, um caso em particular se destacou: o assassinato de duas pessoas em um bar, um evento que deixou marcas.

Um jovem caminhoneiro, cuja história já foi contada, chamou a atenção do subdelegado para uma briga fora de controle no estabelecimento.

No entanto, quando o subdelegado chegou, os acontecimentos já tinham se desenrolado e ele se deparou com dois trabalhadores da serraria conhecidos da vila, cuja narrativa já foi relatada, em estado de choque diante do ocorrido.

Apontando com os dedos tremendo para trás da porta, indicaram à autoridade o corpo de um dos mortos, enquanto o outro, gravemente ferido por vários tiros, foi socorrido próximo ao hotel e ao Posto da Vila, mas acabou falecendo posteriormente.

Esse caso foi tão impactante que anos depois o julgamento aconteceu no Ginásio de Esportes de Salgado Filho, com grande repercussão.

Sem dúvida, mexeu com a parte emocional do subdelegado, que exercia sua profissão de forma voluntária e gratuita. As dificuldades inerentes à profissão muitas vezes recaíam sobre a autoridade, sobretudo em termos emocionais, através de depoimentos, viagens e outras situações desgastantes.

Um episódio profundamente comovente, cuja fotografia vi em sua residência em uma visita como uma marca triste, foi o de um suicídio coletivo. Um pai, trabalhador na empresa que realizava a terraplanagem da BR, em um instante de perda e desencanto, tirou não apenas sua própria vida, mas também a de seus dois filhos.

Esta imagem, guardada na memória desde meus seis anos, traz consigo uma amargura silenciosa. Naquela idade, eu não conseguia compreender como alguém poderia fazer isso, sacrificando vidas tão inocentes e a própria existência.

Mesmo hoje, essa lembrança permanece, trazendo reflexões sobre a profundidade da dor humana e o mistério que envolve o desespero.

Uma das facetas notáveis de suas atividades sociais era o CTG, uma paixão que ele nutria profundamente.

Embora nunca o tivéssemos visto dançando, ele era zeloso guardião dos estatutos, garantindo a disciplina e controlando eventuais excessos.

Como Presidente do Conselho de Vaqueanos, ele assegurava que a ordem fosse mantida a todo custo. Qualquer deslize, como uma saia um pouco curta, dança excessivamente íntima ou a falta de lenço no pescoço, era prontamente corrigido.

Primeiro, um olhar firme e discreto, depois um gesto sutil com o dedo indicador para alertar, e por fim, a pessoa era conduzida à Secretaria para receber uma advertência e orientações, ou até mesmo convidada a se retirar do baile.

Com relação à irmã dessa família, tive pouco contato, conheci um pouco mais sua filha que foi minha professora e posteriormente colega e com o esposo dessa senhora - um senhor sereno, de conversa agradável, que frequentemente se dirigia à Vila com o seu corcel branco de quatro portas.

Devido à estrada enlamaceada, era necessário equipar os pneus com correntes para conseguir se locomover.

Ele costumava contar uma história engraçada sobre a primeira vez que ele acorrentou o carro: de forma peculiar, colocou uma corrente no pneu dianteiro e outra no traseiro e seguiu rumo à Vila.

Ao passar em frente ao posto, onde os moradores locais costumavam se reunir, recebeu uma gozação épica.

Todos riam ao ver os pneus com correntes nos lugares errados, já que o corcel possuía tração dianteira, tornando as correntes inúteis para melhorar a aderência na estrada.

Ele jurava que havia colocado uma corrente em cada pneu, de forma alternada, mas isso não afetava sua índole nem o modo como tratava as pessoas - era querido por todos. No final, ficou apenas a divertida história para ser contada e relembrada.

Esses três irmãos, cujas casas eram vizinhas e cujas famílias continuam morando próximas até hoje, representam um modelo de povoamento da época.

Naquele tempo, as famílias buscavam se estabelecer próximas umas das outras para se ajudarem mutuamente, mesmo que cada um seguisse seu próprio caminho, de acordo com seus planos e visão de futuro.

Observar essa família é relembrar de um período marcado por muitas dificuldades, muito trabalho árduo e privações, mas sempre com o básico garantido e a manutenção das tradições.

Um exemplo disso é a filha de um dos irmãos, que se tornou a primeira patroa do CTG. Alguns filhos se envolveram na parte campeira do CTG, mantendo viva a essência e o legado de seus pais, combinando tradição com a realidade atual de forma a preservar a história construída com muito esforço e coragem.

Nesse período, em que as comunicações eram escassas, a honra se baseava em poucas palavras e no cumprimento dos acordos, seguindo a tradição gaúcha de honrar o bigode como símbolo de compromisso em qualquer tipo de contrato.

Sem sombra de dúvidas, muitas outras lembranças poderiam ser resgatadas, porém, em minhas viagens mentais, são essas reminiscências que guardo com gratidão às queridas famílias com as quais tive o privilégio de conviver, primeiro como colega de estudos e depois como professor de alguns.

Foram tempos de grande companheirismo e amizade, onde compartilhávamos o pouco que tínhamos, bastando-nos uma bola e um campo de terra para nossa felicidade ser completa.

Hoje, a maioria desses pioneiros personagens já está no plano celestial, com certeza, acompanhando a prosa e irradiando energia positiva para aqueles que ficaram, incentivando-os a manter a esperança e seguir os passos que nos foram tão dedicadamente ensinados.


Paulo Roberto Savaris – Um Sonhador Caminhando com Francisco e Autor do https://www.caminhandocomfrancisco.com/blog

 

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