Na Linha Pedra Lisa Alta, onde as águas das nascentes dos rios Marrecas e Tamanduá se separam, é possível vislumbrar um cenário repleto de tradições italianas e costumes familiares.
Em meio à uma família numerosa, ao trabalho árduo no cultivo manual e às refeições fartas à base de polenta e galinhas criadas no terreiro, a vida seguia seu curso.
As caçadas, as pescarias e a colheita de frutas silvestres como amorinhas, araticuns e pitangas completavam o cotidiano, enquanto o patriarca da família, com sua voz grave e sotaque italiano, mantinha a autoridade, sempre equilibrada pela doce matriarca.
Levantar cedo para as tarefas agrícolas era um desafio para a juventude, mas bastava um simples "andiamo la mattina" do patriarca para que todos se mobilizassem.
O café reforçado, a polenta brustolada, o salame, a chimia de abóbora e o pão feito no forno de barro eram verdadeiros banquetes matinais.
E para os mais velhos, um bicchiere di vino acompanhava as conversas ao redor da mesa, trazendo força e união para enfrentar as longas jornadas diárias até o anoitecer.
Neste microcosmo familiar e comunitário, a palavra do patriarca ressoava como a de Pedro, o apóstolo cujo nome significa pedra, pois o patriarca compartilhava o mesmo nome do irmão do líder da barca.
Era ele quem guiava a família com sabedoria e determinação, garantindo que o legado familiar fosse honrado e que a jornada diária fosse encarada com coragem e fé.
Naquela época, a ordem era dormir cedo, mas sempre havia uma brecha para desfrutar um pouco de entretenimento no rádio.
Ouvir a dupla Tonico e Tinoco, na incrível voz do Zé Bétio da Rádio Record, ou acompanhar os jogos dos times do coração na Rádio Guaíba, era um verdadeiro deleite.
Claro, antes disso, era imprescindível recitar o terço, pois a fé era a bússola que guiava a jornada, fortalecida pelos cultos na Vila e pelas missas mensais.
Escalar a serra a pé ou a cavalo era uma verdadeira provação, especialmente ao chegar na temida curva acentuada, que convidava para um merecido descanso.
Hoje, trazemos a narrativa de mais uma família de descendentes de italianos, que, em uma modesta propriedade, conseguiram erguer uma família numerosa e respeitável, que se espalhou pelo sul do país.
Minhas lembranças dos patriarcas podem não ser tão nítidas, mas a imagem do senhor de bigode farto e voz poderosa ecoa na minha memória, reforçada pela visita à sua sepultura, onde repousa ao lado de sua amada esposa.
O modo de vida dessa família se assemelha ao de tantos outros pequenos agricultores que deixaram o amado Rio Grande em busca de uma vida melhor, buscando oferecer aos filhos a oportunidade de ter sua própria propriedade e dar continuidade à história familiar.
Enfrentar as adversidades de terras pedregosas e inclinadas era um desafio gigantesco. O aclive acentuado, juntamente com as pedras no caminho, tornava o trabalho de arar a terra um verdadeiro teste de resistência para os bovinos e os trabalhadores.
O objetivo era claro: plantar feijão, milho, trigo - os alimentos básicos que sustentariam a família e gerariam lucro para melhorias na propriedade.
Mas o verdadeiro sonho era proporcionar aos filhos um pedaço de terra onde pudessem construir suas próprias famílias.
Com os suínos na pocilga, a vaca leiteira, o bezerro destinado ao abate e as galinhas soltas no terreiro, a mesa estava sempre farta.
No entanto, as privações eram uma realidade constante. Sem eletricidade, o lampião à querosene iluminava as noites. Sem geladeira, a banha mantinha os alimentos conservados, assim como o charque pendurado no varal próximo ao fogão a lenha ou exposto ao sol.
O queijo curava em uma tábua improvisada na janela da cozinha, enquanto o fogão a lenha aquecia a comida.
Mesmo diante de todas as dificuldades, a determinação e a força de vontade da família eram inabaláveis.
A busca por uma vida melhor e a esperança de um futuro próspero para os filhos mantinham a chama da esperança acesa, mesmo nos momentos mais desafiadores.
A lembrança que guardo dessa família é dos filhos mais novos, já que os mais velhos partiram cedo para formar suas próprias famílias no interior de Salgado Filho e posteriormente no Rio Grande do Sul, na região calçadista.
Um deles tinha uma aparência muito semelhante à do patriarca, enquanto o outro, infelizmente falecido recentemente, cujo seu filho trabalha em meu sítio como diarista.
Os jovens da família seguiram caminhos distintos: um se tornou borracheiro e ferreiro na linha Rio Verde, enquanto o outro viveu por anos em uma propriedade próxima à dos pais, tornando-se cliente frequente de meus pais antes de se mudar para o interior de Marmeleiro.
Mantendo a tradição italiana, esses familiares valorizam a simplicidade, a qualidade do trabalho e a fé, resistindo às influências da modernidade.
A estrutura de madeira da residência, os hábitos alimentares e as interações sociais ainda seguem os padrões tradicionais.
As visitas ao comércio continuam sendo semanais, momento em que resolvem todas as questões relacionadas à vida familiar e à propriedade, otimizando o tempo e reduzindo os custos de deslocamento.
Um belo exemplo disso é o caçula da família, que ainda reside na propriedade dos patriarcas e me traz as lembranças mais marcantes.
Além de manter as tradições familiares, ele sempre procurou inovar em suas atividades como pequeno produtor rural. Isso foi crucial para que conseguisse sobreviver, mesmo diante dos desafios cada vez maiores dessa atividade.
Produzir em pequena escala exige uma qualidade excepcional, algo que ele sempre buscou ao aderir à tendência orgânica e à produção de ervas medicinais. Tudo isso visando viver com dignidade e garantir um futuro sustentável para seus filhos.
Como o mais novo da família, coube a ele cuidar dos pais na velhice, algo que ele e sua esposa fizeram de forma exemplar.
Lembro-me das vezes em que visitei a sua propriedade para recolher produtos, e pude testemunhar o carinho com que tratava sua mãe.
Além disso, ele foi de grande ajuda para mim, quando um jovem aprendiz motorista precisei deixar a caminhonete em sua propriedade e seguir a pé até em casa em um dia chuvoso.
Apesar de todos os empenhos, a precariedade da estrada me forçou a fazer o retorno e voltar à propriedade, logo após a curva acima, onde o veículo perdeu tração e começou a deslizar.
Considero uma das estradas mais desafiadoras de acessar no Município, mas ao longo do tempo foram feitas melhorias significativas para aumentar a acessibilidade.
Em uma das porções da antiga propriedade, encontra-se estrategicamente situada uma das principais cascalheiras do Município, a qual adquirimos durante a minha gestão como Chefe do Executivo Municipal.
Ademais, o Viveiro Municipal foi erguido durante o mandato da minha sucessora, garantindo assim a continuidade e preservação do ambiente local.
Seus filhos seguiram caminhos diferentes e interessantes. O mais velho é um comunicador e motorista autônomo, um indivíduo incrivelmente perseverante mesmo diante das adversidades que enfrentou. Acidentes, problemas de saúde e a perda precoce da esposa não o abalaram, mantendo sua fé inabalável e reconstruindo sua vida continuamente.O segundo filho é um verdadeiro batalhador, que começou como frentista em um Posto de combustível em nossa cidade e hoje vive e trabalha em Francisco Beltrão, levando consigo a história e determinação da nossa amada família.
O filho mais novo é formado em técnico agrícola e trabalha na Secretaria Municipal de Agricultura, compartilhando seu conhecimento com os produtores rurais do Município.
Quanto à filha mais nova, que é da idade da minha filha mais velha, tenho pouco contato com ela. Às vezes a vejo na igreja e acredito que esteja bem, tendo um vínculo mais próximo com os pais.
Recordo vividamente o momento em que a matriarca nos deixou, logo após o plebiscito da Vila.
Com sua partida, a primeira geração familiar na região chegou ao fim, deixando marcas que perduram até hoje.
Às vezes, encontro alguns parentes e é sempre um prazer vê-los bem, mantendo a simplicidade e sabedoria herdadas dos pais.
Seus cabelos grisalhos revelam o passar do tempo, mas a essência ensinada pelos antecessores permanece viva, transmitida às novas gerações.
Entre esses familiares, destaco meu amigo diarista, que cuida com tanto carinho da minha propriedade. Sua dedicação, atenção aos detalhes e respeito me comovem profundamente, estabelecendo uma parceria que beira a familiaridade.
Nos dias atuais, encontrar alguém tão comprometido com o trabalho é algo singular e digno de admiração.
Relembrar essas pessoas significa estar em contato com valores fundamentais como a honradez, o trabalho árduo e a fé inabalável.
Mesmo que a educação formal tenha sido escassa, a criatividade e a determinação para enfrentar os desafios da vida foram características marcantes, típicas de sua origem étnica e da alma guerreira dos gaúchos, que jamais recuam diante de uma causa justa.
Ainda que não haja muitos detalhes pessoais a destacar, diante da minha limitada proximidade, não posso ignorar o legado deixado por esses homens e mulheres que dedicaram suas vidas em prol do crescimento de todos ao seu redor.
Lembro-me com carinho de uma celebração da Procissão de Ramos, na qual fui presenteado pelo meu filho mais novo com um ramo de oliveira.
Esse gesto simbólico evoca a época de Jesus e inspirou-me a cultivar uma oliveira em minha propriedade, ao lado de pés de tâmaras.
Embora eu próprio talvez não testemunhe sua plena produção devido ao ciclo longo dessas plantas, elas certamente serão uma herança duradoura para as gerações futuras, que poderão apreciar o significado histórico dessas espécies para os cristãos.
Que Deus, em Sua infinita misericórdia, continue abençoando esta querida família, permitindo que sigam em seus caminhos terrenos carregando as tradições que enobrecem a humanidade, sempre em busca de evolução.
Pois, de fato, a humanidade precisa de novas formas de ser e agir para impulsionar o mundo de maneira positiva em prol da vida.
Um Sonhador Caminhando com Francisco - Escritor do blog https://www.caminhandocomfrancisco.com/
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