Há indivíduos que nascem com o dom natural de se relacionar bem, sem precisar de qualquer tipo de treinamento formal. A empatia e a capacidade de se expressar de forma suave estão intrinsecamente ligadas às suas personalidades, desde a entonação da voz até os gestos corporais sutis que revelam sua delicadeza.
Suas palavras são sempre ponderadas e construtivas, levando-nos a refletir sobre determinados fatos, eventos ou pontos de vista de maneira incrivelmente clara, mesmo sem formação acadêmica.
Embora possamos admirar essas habilidades em relação ao mundo exterior, nem sempre sabemos como essas pessoas se relacionam em seu círculo íntimo.
Lembro-me de uma religiosa querida, que era muito conhecida na Paróquia São Francisco de Assis de Salgado Filho, durante os anos 80, e posteriormente na Reitoria de nossa cidade.
Um verdadeiro anjo em pessoa, com sua simplicidade, expressão tranquila e acolhedora, e uma voz reconfortante.
Tive o privilégio de hospedá-la em minha casa por vários dias, em suas visitas em prol da beatificação/santificação de sua superiora.
Em uma conversa, perguntei à irmã como ela alcançou tamanha paz e calma, além da profunda conexão com Deus.
Com serenidade, ela respondeu: "Você não me conheceu quando era jovem. Talvez não pensasse assim de mim hoje". Sua resposta simples revelou que o caminho para a maturidade e a plenitude emocional requer tempo e experiência.
Os personagens da minha história de hoje, com suas expressões pacíficas, me fazem refletir sobre suas personalidades.
Em uma época em que nós, jovens, tínhamos o costume de observar e respeitar os mais velhos, aprendíamos muito com as histórias dessas famílias e os obstáculos enfrentados para chegar à Vila do Povo Feliz.
Esses irmãos, vindos das regiões rurais do Rio Grande do Sul, próximo de Santa Catarina, vieram na onda dos imensos pinheirais, que eram derrubados para promover o progresso na vila e criar oportunidades para as famílias viverem de maneira digna.
Eles possuíam um forte senso comunitário e um desejo constante de trabalhar arduamente, pois foram ensinados desde cedo a importância do trabalho árduo, das crenças espirituais e do convívio em sociedade.
O que movia esses irmãos era a dedicação incansável ao trabalho, pois desde a infância, eles dominavam ferramentas como a enxada, o arado e a máquina de plantio manual, além de terem amplo conhecimento sobre cultivos e criações que garantiam a subsistência em suas pequenas propriedades.
Quando os irmãos chegaram à Vila, cada um seguiu um caminho diferente: um se tornou serrador na principal madeireira do local, um trabalho árduo que exigia força, mas ele era jovem e recém-casado com uma mulher admirável.
Ele tinha as qualidades necessárias para desempenhar bem suas funções e sustentar sua família com dignidade.
Enquanto isso, o outro irmão se envolveu no ramo comercial, possuindo um bar, que tinha também um bolão e um salão bailes.
Seu estabelecimento era o centro das atenções na Vila, antes da construção do Pavilhão da igreja e do CTG.
A potência do motor a diesel acoplado ao gerador, que tremia a Vila quando ligado, era uma lembrança marcante para os jovens locais.
A esposa do segundo irmão o comerciante, era conhecida por sua voz alta e exuberante, cumprimentava suas amigas com um divertido abraço e expressão: "- Cadelona, como você está?".
Apesar de ser um tanto chamativo, todos sabiam que era apenas a forma carinhosa dela de receber as pessoas.
E assim, a Vila se enchia de vida e histórias, conectando todos os moradores em eventos memoráveis.
Com o passar dos anos, os rebentos do habilidoso serrador foram se espalhando para diferentes lugares, em busca de seus próprios caminhos.
Um deles se estabeleceu em Salgado Filho, tornando-se motorista de uma cerealista por muitos anos.
Outro, meu grande amigo, se destacava como um talentoso jogador de futebol no nosso Botafogo local, lembrando um zagueiro robusto como Anchieta do Grêmio e certeiro como Figueroa do Internacional, com seu cabeceio imponente e presença dominante na área.
Atualmente, ele reside em Curitiba e todas as vezes que retorna à nossa hoje cidade, não deixa de passar para uma visita nostálgica e animada.
Lembro-me de uma dessas ocasiões em que me presenteou com uma fita cassete da dupla sertaneja Roberto e Meirinho, um lançamento que ele queria que eu desfrutasse.
No entanto, hoje presumo que esteja desfrutando de sua merecida aposentadoria.
Uma das filhas foi viver no interior de Santa Catarina, enquanto outro rapaz que tenho leve recordação escolheu morar no Mato Grosso.
Já a primogênita permaneceu na Vila, sempre ao lado dos pais. Durante anos, ela trabalhou como servente na escola, desde os tempos em que sua remuneração era garantida pelos pais dos alunos.
Hoje aposentada, desfruta de sua casa e dos momentos preciosos com seus filhos e netos, após cumprir com dedicação o papel de cuidar dos pais, sobretudo da mãe que lhes deixou já nonagenária e lutando contra a demência, necessitando de todo o amor e carinho para enfrentar essa dolorosa realidade.
Mas as lembranças que mais me marcaram foram as do patriarca, um senhor incrivelmente gentil que era uma figura ativa na comunidade.
Após se aposentar, ele costumava passar todos os sábados à tarde em frente ao nosso comércio por volta das 13h30min, com um caminhar elegante, parava para conversar antes de se dirigir ao centro para jogar cartas (quatrilho, três sete, menos copa, bisca...), com os amigos.
Às 17h, ele retornava lentamente para casa, subindo a serra com serenidade.
Era fascinante observar a cumplicidade entre ele e os outros dois idosos que formavam uma parceria única.
Comunicando-se às vezes em italiano e às vezes em sua própria linguagem idiossincrática, eles compartilhavam uma amizade tão forte que inspirava admiração.
Infelizmente, o serrador aposentado foi o primeiro a nos deixar, mas um dos "três mosqueteiros" ainda está conosco, aos 90 anos, mantendo viva a memória desse vínculo tão especial.
Após se dedicar ao comércio, o irmão mais novo, decidiu retomar suas raízes na agricultura e se mudou para perto da encruzilhada de Salgado Filho.
Lembro-me vividamente de uma tarde de domingo em sua casa de madeira, onde nossa família desfrutava de mate doce, pipoca e bolinho, regado a animadas conversas em tom alto.
Sua esposa, liderava a animada roda de conversas com sua energia acolhedora inabalável.
Após um período na agricultura, ele retornou à Vila e assumiu o cargo de Sub Prefeito do Distrito, demonstrando zelo e dedicação.
Sempre atento às necessidades dos moradores, ele fazia a manutenção das vias com uma enxada após as chuvas, garantindo o bom escoamento das águas.
Além disso, ele se encarregava de distribuir os carnês do IPTU, Alvará de Licença, taxas... e de outras tarefas próprias de seu cargo, demonstrando sua capacidade de liderança e comprometimento com a comunidade.
Enfrentar os desafios de uma Vila que se tornava cada vez menor, com poucas oportunidades de desenvolvimento, exigia encontrar alternativas criativas.
Foi assim que decidiram se mudar para Salgado Filho, onde o filho mais velho já vivia, assim como as filhas, que haviam se casado e estavam trabalhando na cidade.Lembro-me dos seus filhos, marcadas por momentos de esporte e diversão.
Um desses momentos foi quando o filho mais velho, que trabalhava em um escritório de contabilidade, sofreu um pequeno acidente de moto enquanto jogávamos bola em um terreno próximo. Ajudei a socorrê-lo, mas felizmente as escoriações não foram graves.
O filho do meio tinha um apelido relacionado ao Posto de combustível “Esso”, algo que fazia referência ao seu nome.
Ele era goleiro do segundo time do Botafogo, utilizando uma camisa amarela que o destacava durante os jogos no gol perto da Clínica da Mulher, onde um grande pinheiro servia de apoio para o famoso mascote Veno.
Já o rapaz mais novo, conheci durante a escola e também nos momentos de diversão na discoteca de Salgado Filho durante a juventude.
Cada encontro e lembrança desses momentos únicos e especiais nos mostram a importância da família e da amizade em todas as fases da vida.
Hoje, de longe, observo-os e vejo que todos estão bem. Recentemente vi uma postagem em que a matriarca comemorava seus 90 anos.
É tão inspirador vê-la ainda radiante, com seu jeito simples de encarar a vida e sempre olhando para o futuro com muita determinação.
Escrever sobre essa história é uma dádiva que agradeço a Deus. Mesmo que nem todos os detalhes sejam precisos, pois são parte das minhas memórias, sempre haverá algo a ser contado.
O mais importante é honrar o legado dessas pessoas que, de forma simples, cumpriram sua missão neste mundo, enfrentando desafios com coragem em uma época em que se valorizava a história, tinha-se fé inabalável, cultivava-se amizades e se tinha o trabalho como a esperança por dias melhores.
Cada indivíduo tem o seu modo peculiar de viver, deixando a sua marca na história.
No entanto, nos deparamos com um tempo em que o efêmero prevalece, relegando o duradouro ao segundo plano.
Para muitos jovens, o passado não possui importância, pois se consideram imortais, crendo que a velhice nunca chegará.
Buscam a imortalidade a qualquer custo, mesmo cientes de sua impossibilidade.
Antes, os valores familiares eram o alicerce principal, porém, atualmente, a influência midiática e ideológica molda os pensamentos e comportamentos da sociedade.
Essas ideologias, por vezes, se tornam arcaicas e conservadoras, inadequadas ao mundo em que vivemos, ou extremistas, buscando impor um pensamento único.
A diversidade de pensamentos é sufocada, prejudicando as relações interpessoais.
Nada disso se compara aos dois personagens históricos que destacam-se pela sua maneira pausada de falar, pela capacidade de dialogar e ouvir com respeito, baseando-se na experiência e no amor ao próximo.
Um Sonhador Caminhando com Francisco - Escritor do blog https://www.caminhandocomfrancisco.com/
Quantas lembranças boas dessa família. Gente boa, cultivavam muitas amizades.
Lembro de cada um com muito carinho!