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HISTÓRIAS DA VILA DO DO POVO FELIZ (27) - FAMÍLIA NINOW (1)


Em meio a um cenário em que os estudos eram deixados de lado, uma família de origem alemã se destacava ao incentivar seus filhos a dedicarem-se ao aprendizado formal.

Enquanto a maioria dos pequenos agricultores priorizava o trabalho, os pais dessa família compreendiam a importância da educação e buscavam proporcionar oportunidades aos seus filhos.

As crianças, desde os seus 8 a 10 anos, já tinham responsabilidades no campo, realizando atividades que exigiam grande esforço físico do amanhecer ao anoitecer. O lazer era escasso, mas quando possível, estava ligado à natureza, proporcionando certo alívio para as perdas de contato social.

Nos raros momentos de interação com os vizinhos, seja nos dias de descanso ou nas tardes chuvosas, partilhavam vivências, saboreavam um mate, degustavam pipoca e até realizavam trocas de produtos através do escambo e colaboração mútua.

Além disso, não podiam deixar de sintonizar o Programa Rodando com Música do carismático Jota Agostinho na Rádio Princesa e também apreciar o talento de Roberval Bastos na Educadora de Francisco Beltrão.

Nesse ambiente desafiador, a família alemã se destacava pela valorização da educação e pelo estímulo ao conhecimento, mostrando que, mesmo em meio às dificuldades e ao trabalho duro no campo, era possível construir uma base sólida para o futuro de seus filhos.

Naquela época, o trabalho árduo e a fé eram os pilares que sustentavam a vida familiar, moldando os valores e tradições que seriam passados adiante. Os avós dessa história, com seu forte sotaque alemão, viviam na remota linha Pedra Lisa, no final do caminho acidentado que separava suas casas do restante da comunidade.

Os anciãos, com suas rugas esculpidas pelo tempo, eram como um quadro vivente dos pioneiros alemães que desembarcaram no Brasil.

O patriarca, com sua expressão austera, e a matriarca, adornada com um lenço branco e vestido de tergal azul, mantinham acesa a chama da tradição de seus antepassados.

Lembro-me das visitas desses queridos idosos, trazendo queijo para trocar por produtos no comércio dos meus pais. Não era um queijo perfeito em forma, mas a qualidade do sabor compensava qualquer imperfeição.

Geralmente era um queijo curado, perfeito para ralar e usar em diversas receitas tradicionais, como risotos, carreteiros e sopas. E assim, através dos sabores e tradições, a família mantinha viva a conexão com suas raízes alemãs, criando memórias.

Os pais desses estudantes, vindos dessa linhagem alemã, eram um casal alto e robusto, com olhos claros que brilhavam com a vitalidade dedicada ao trabalho árduo.

O sotaque carregado de características tanto do português quanto do alemão era uma marca peculiar do senhor, cujo tom por vezes melancólico revelava a influência da herança cultural. A rotina exaustiva e metódica, típica dos alemães, se refletia em sua forma de encarar a vida.

Assim como tantas outras famílias de agricultores da época, a preocupação em prover o sustento da família era constante. A alimentação repleta de feijão, arroz, carne de porco, pão, queijo, cuca, melado e linguiça cozida na água garantia a energia necessária para enfrentar os desafios do trabalho no campo.

A terra pouca, pedregosa e íngreme limitava a produção de milho e feijão, sendo grande parte destinada à subsistência e o excedente à comercialização para custear as demais despesas anuais.

Os pais, cientes do cenário, tomaram a decisão de incentivar os filhos a estudarem desde cedo. Inicialmente, frequentaram a escolinha Pio X, próxima de casa, com uma dedicada professora da comunidade, cuja história já foi retratada.

Após concluírem o Ensino Fundamental I, os três jovens de olhos claros, duas meninas e um menino, enfrentavam diariamente a subida até a Vila do Povo Feliz, situada a cerca de 6 km de distância, em uma estrada de cascalho solto.

Descer a estrada era como uma dança fluida com a gravidade a favor, apesar do perigo das pedras soltas lhes fazerem escorregar. Mas subir, ah, subir era como enfrentar um desafio épico, conquistado com passadas firmes e determinadas.

Imagino o quanto percorreram ao longo dos anos escolares, sem sequer lembrar de levarem uma garrafinha de água, como é comum hoje em dia.

Vestidos com uniformes simples, mas impecáveis, eles se tornaram verdadeiros heróis, enfrentando diariamente o trajeto para a escola e até mesmo aproveitando para fazer pequenas compras no comércio local após as aulas.

O retorno para casa costumava ser mais descontraído, permitindo-nos brincar um pouco, especialmente nas sextas-feiras em que poderiam sujar os uniformes. Assim, tinham tempo de lavá-los durante o final de semana e começar a semana de estudos com tudo limpo e passado.

Geralmente tinham apenas um uniforme, com o emblema da escola no bolso feito de material sintético, preso com uma joaninha ou mesmo bordado no tecido.

As brincadeiras eram divertidas, como jogos de esconde-esconde e de corre-corre. Também era comum a solidariedade entre os colegas, trocando frutas para o lanche durante o caminho de ida.

No entanto, algo incomodava esses jovens e a todos nós naquela época: os apelidos. Era uma forma provocativa entre os colegas, e se não soubessem lidar com isso, poderia resultar em brigas.

O bullying não era repreendido nem pelos pais nem pelos professores, então a situação tinha que ser resolvida entre nós mesmos.

Com o passar dos anos, a família enfrentou diversas dificuldades devido ao baixo rendimento na agricultura e à necessidade de diversificar suas atividades diante da mecanização.

Diante desse cenário, tomaram a decisão de vender a propriedade e se mudar para Francisco Beltrão.

O patriarca se estabeleceu próximo ao parque de exposições, onde abriu uma mercearia. Enquanto isso, os filhos buscaram empregos para ajudar no sustento da família, sendo que um deles conseguiu um cargo importante em uma indústria de balanças, graças à sua habilidade e dedicação ao trabalho.

Mesmo tendo escolhido viver na cidade para proporcionar melhores condições de vida para a família, o patriarca com o tempo viu seus pais falecerem devido à idade avançada.

Apesar de ter um objetivo claro, sua mente continuava voltada para o campo. A saudade gradualmente tomou conta de suas forças, levando-o a uma depressão que, com o tempo, resultou na sua trágica decisão de tirar a própria vida.

Aqueles que enfrentam tal situação conseguem entender como a mente pode ser traiçoeira e nos tornar prisioneiros de nós mesmos.

É natural nos questionarmos quando perdemos alguém devido à desistência de viver. Nos perguntamos o que poderíamos ter feito para evitar, buscamos respostas que parecem escapar de nossas mãos.

Cada um carrega suas próprias dores internas, e temos o livre arbítrio de escolher como lidar com elas. Às vezes, mesmo com toda a força e determinação, não conseguimos superar esses momentos com a intensidade necessária.

Nessas horas, é comum nos colocarmos como juízes, mas sabemos tão pouco sobre as motivações que levaram o outro a tomar essa decisão.

Em vez de julgar, o mais eficaz é enviar preces de conforto para a alma que partiu e para aqueles que ficaram aqui sofrendo com a perda.

Atualmente, observo à distância pelo menos uma das jovens, agora uma mulher, que regularmente lê meus textos e dá feedback valioso que enriquece meu trabalho.

O rapaz, por sua vez, cruzou meu caminho pela última vez em uma festa em homenagem à padroeira Nossa Senhora de Fátima em nosso Município, onde aproveitou para rever os amigos e matar saudades.

Os outros membros dessa família, infelizmente, não tenho contato algum. Mas tenho a certeza que esse clã, enraizado em tradições alemãs, continua a valorizar o trabalho árduo, a fé e a integridade na vida em sociedade, pautando sua conduta na honestidade e no cumprimento fiel da palavra dada.

A última lembrança que guardo dos avós remonta à metade dos anos 1980, quando a casa onde eles viveram foi desmanchada pelo novo proprietário.

Meu pai me incumbiu a pedido do novo dono de transportar a madeira da casa do local até a Vila, uma tarefa complicada devido ao acesso precário da propriedade, que estava praticamente abandonada e em estado de ruína. O pneu furou durante o trajeto, o que nos trouxe diversos problemas para trocá-lo.

A madeira dessa antiga casa foi reaproveitada na construção de - uma ferraria a uma oficina mecânica e, finalmente transformou-se em uma loja de materiais de construção, ainda em funcionamento. Mesmo atualmente, é possível encontrar vestígios da madeira maciça.

Outra lembrança marcante desse período foi o encontro com o inseto barbeiro, transmissor da doença de Chagas, que infelizmente fazia parte do ambiente desse local abandonado por tanto tempo.

É inspirador recordar aqueles que, com muita garra e uma jornada repleta de desafios, construíram sua história a partir dos valores transmitidos por seus ancestrais europeus.

Essa cultura, preservada com zelo, nos permite testemunhar a saga destes jovens determinados, que trilharam um caminho árduo para conquistar seu lugar na sociedade.

A saudade dos avós e do pai sem dúvida, torna um impulso vital para essas hoje senhora e senhor seguirem em frente, enfrentando os obstáculos com resiliência e focando no que realmente importa, valorizando a essência de um dia ter sido jovem e a sabedoria adquirida com o tempo.

Compreendemos então que a verdadeira plenitude não está nos bens materiais, mas sim na essência do que somos.

A simplicidade e humildade tornam-se traços distintivos, em contraste com a sociedade do consumismo, onde a essência se perde nos excessos e nos custa caro em termos de saúde.

Reconquistar o equilíbrio torna-se um desafio ainda maior, pois o corpo já não responde como antes.

Quero expressar minha sincera gratidão a essa família que esteve presente em minha jornada estudantil e nos negócios de meus pais. Embora não tenhamos sido necessariamente grandes amigos, cultivamos uma relação de respeito mútuo.

Graças a essas boas lembranças, posso dedicar um momento para relembrar uma época em que a simplicidade superava a escassez, o amor era a maior virtude e o perdão sempre imperava.

Mesmo nos momentos de tristeza, a alegria contagiosa prevalecia, e onde havia desunião, a solidariedade e a compaixão surgiam naturalmente, enxergando no próximo um irmão.


Um Sonhador Caminhando com Francisco - Escritor do blog https://www.caminhandocomfrancisco.com/


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